quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A cicatriz da tomada: documentário, ética e imagem-intensa (Parte 1)

Neste tema faz-se a análise da narrativa documentária e “imagem-intensa paradigmática”.
É tida como referência para a dimensão da “tomada” o uso social da imagem em movimento.
Na relação imagem-câmera há uma relação entre o espectador e o cineasta, no qual a imagem-intensa é a matéria-prima dessa relação.

Tomada e enunciação na narrativa documentária

-A dimensão da tomada determina-se como a questão ética no documentário. É através da tomada que se constitui a imagem-câmera, esta, para/pelo espectador e pelo/para o sujeito que sustenta a câmera.
Nas imagens documentarias existe uma homogeneidade espacial entre o campo da imagem e a circunstancia de mundo que a circunda, contrariamente à imagem ficcional onde nesta há uma heterogeneidade entre o espaço dentro e fora de campo, a que chama-se de “cenário”. No cinema documentário não é levantada alguma objecção quanto ao uso de cenários.
Exs. Night Mail (Basil Wright, Harry Watt e Alberto Cavalcanti, 1936)
The Thin Blue Line (Errol Morris, 1988)

-A encenação e cenário são os elementos estruturalmente distintos no modo da constituição da tomada. Na encenação a acção é esvaziada de espontaneidade. O filme Nanook of the North , Robert Flaherty, 1922, é inteiramente encenado, como é próprio da narrativa documentaria até aos anos 1960. A presença do sujeito que sustenta a câmera na circunstância da tomada transparece na imagem, constituindo a “intensidade” da imagem-câmera. Essa intensidade, é a cicatriz da tomada na imagem, constituindo um dos traços diferenciais da tradição documentaria. A questão ética no documentário deverá ser pensada sempre à volta de evidência da tomada e da sua oposição à circunstancia de mundo que a determina, para e pela experiência do espectador.

a) A enunciação

-A definição do documentário estabelece-se entre a enunciação e a tomada.
Roger Odin, define-o como processo operativo que constrói um modo de leitura, o documentarizante, estabelecendo uma diferenciação entre a narrativa documentaria, aquela que mostra, a narrativa que mostra de um modo mais participante, a que mostra de um modo mais pessoal, ou a narrativa documentaria que possui estrutura poética.
O modo de enunciação constitui, então, o documentário como singularidade narrativa. O documentário poderá ser definido, como uma narrativa que estabelece enunciados sobre o mundo histórico: “assim vive Nanook”.
No documentário a figura do personagem é bastante comum, não é interpretado por um actor mas por pessoas comuns.
No documentário o aproveitamento de tomadas realizadas em função de circunstâncias espaciais/temporais diferentes daquelas que cercam a intenção do narrador, que articula os planos em narrativa, é interno.
-A utilização de filmes de arquivo, de diálogos, depoimentos, entrevistas do “arquivo”, formam o documentário de arquivo, em que há a cisão entre o contexto da tomada e a utilização das imagens, em outra época, pela narrativa. Define-se então “filmagem” que caracteriza o filme documentário, realizada com imagens obtidas de um processo de duração e orientação. A enunciação narrativa é comum ser assumida por uma “voz-de-Deus”.

b) A tomada

-Na caracterização da narrativa documentaria a imagem, mediada pela câmara é constituída através da “tomada”. A tomada faz parte do outro lado da enunciação documentaria. A definição do documentário como narrativa composta pela enunciação é incompleta, pois põe de lado a imagem. Esta última mediada pela máquina-câmera. Realça-se a dimensão da tomada para a definição da imagem-câmera como um todo para o documentário. A tomada lança-se na forma de imagem para o espectador, destacando-se um elemento, a câmera e a sua presença, para o qual o espectador lança o olhar.

1 comentário:

  1. Ao ler o teu resumo consegui compreender aquilo que compõe um documentário, já que na enunciação descreves os pontos chaves pelos quais se caracteriza o documentário. Também, ao falares sobre a tomada conseguimos entender que o documentário tem um outro lado, que passa pelas imagens captadas pela câmara e pela tomada que o observador toma perante as mesmas (a tomada propriamente dita).

    Entendendo que a circunstância da tomada é formada pelo conjunto de acções ou situações que rodeiam e dão forma ao momento que a câmara capta o que lhe é exterior, podemos dizer que quem capta as imagens através da câmara está presente em todo o documentário mesmo que esta presença não seja destacada no documentário.

    Nos documentários a dimensão da presença na tomada é bastante marcada, a circunstância desta tomada é algo que conforma a imagem-câmara, que é a tomada propriamente dita.

    A força estilística de Flaherty, está na intensidade das tomadas, nas quais podemos ver Nanouk puxar com dificuldade um leão-marinho com o seu arpão. A magia deste está em saber transfigurar a presença em imagem, pois ele estava lá, morou no local onde a circunstância da tomada transcorre. Sabia filmar e soube esperar pelo momento de captar para o filme a intensidade da presença, obtida através de longas estadias no local. Como Flaherty, ficou tanto tempo no local que iria documentar, consegue assim articular a sua presença na narrativa, de modo que a intensidade original seja preservada.

    Vertov preocupa-se excessivamente com a dimensão enunciativa, realça os aspectos construtivistas do seu estilo, principalmente a partir do que o próprio chama de “metodologia do cine-olho” (que preocupa-se em explorar os efeitos da montagem cinematográfica como forma de construção). Este realizador utiliza-se de outro conceito “a vida de improviso”, que transporta a análise da tomada para a indeterminação.

    Podemos concluir que a cada realizador assume uma tomada subjectiva perante o seu objecto artístico, apesar dos diversos documentários tomarem diferentes tomadas, á sua maneira particular, estes são uma janela aberta que o espectador pode ter para o Mundo.

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